Por: Odete Santos, do Central do Partido Comunista Português
A luta pelas liberdades é indissociável da luta contra o capitalismo.
Provam-no os 48 anos de fascismo que tivemos de sofrer. Provam-no acontecimentos bem recentes que fizeram regressar a repressão contra as Fronteiras impostas pela Constituição de Abril.
Provam-no a ofensiva contra os direitos laborais, a qual vem sendo acompanhada pelo garrote da democracia política.
Precariedade no trabalho, trabalho temporário sem direitos, salários em atraso, a caducidade de convenções colectivas com destruição de direitos conseguidos com a luta, licenças para despedir, a desregulamentação das relações laborais, todo um programa capitalista para fazer regredir o Direito de Trabalho, tem de forçosamente ser acompanhado pela asfixia das liberdades.
Que o capitalismo não sabe, nem pode, sobreviver com os direitos humanos. Que ele é a face hedionda da exploração, do aniquilamento daquilo que nos tornou e torna humanos: o trabalho.
Há salários em atraso? E logo um sindicalista é condenado por manifestação ilegal, quando apenas reclamou o cumprimento das leis.
Há diversificadas formas de luta contra as arbitrariedades do grande capital, como reuniões sindicais, e logo o braço armado do aparelho repressivo é chamado para pôr na ordem os recalcitrantes.
À porta das empresas ficam as liberdades conquistadas em Abril, no dia 25. Mas também cá fora, neste país que querem transformar num universo concentracionário, ficam as liberdades esfarrapadas pelo poder absoluto dos serventuários do capitalismo.
Séculos de história ensinaram-lhes o poder do medo.
Porque o medo, parafraseando Alexandre O’Neil:
Vai ter tudo
Vai ter enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.
O medo vai ter tudo
heróis (o medo vai ter heróis!)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles.
Vai ter suspeitas como toda a gente...
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer.)
Mas séculos de história também nos ensinaram que a verdade é mais forte que as algemas (como cantava o saudoso Adriano), e que, por isso mesmo, estamos de pé para exercer as liberdades.
E esta é a melhor forma de esconjurar o medo! Lutando pelos direitos que ainda mantemos na Constituição de Abril.
Por onde passa o meu carro a erva já não cresce
Muitos anos antes do momento em que começou a ser implementada a chamada Agenda Social da ONU, já a nossa Constituição, numa antevisão notável de um novo programa mundial, estabelecia – veja-se o artigo 2.º e o artigo 9.º – a interligação, a indivisibilidade, a interdependência entre o desenvolvimento e os direitos humanos, e nestes, a interligação e a indivisibilidade entre direitos económicos, sociais e culturais e as liberdades políticas. Assim, o nosso texto fundamental estabelece o direito do povo ao desenvolvimento e consagra a democracia política, económica, social, cultural e ambiental.
Fá-lo por forma a considerar indissociável o direito ao desenvolvimento de todos os outros direitos.
Não mais se poderá falar de direitos económicos, sociais e culturais por contraposição aos direitos políticos, sendo portanto indissociável a democracia política
Na verdade podemos ler nesta declaração: Democracia, desenvolvimento e respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais são interdependentes e reforçam-se mutuamente.
E proclama-se ainda na plataforma de acção de Viena (*) : Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes.
A realização do desenvolvimento traz no seu bojo o aperfeiçoamento de direitos de participação política, sempre tão importantes na construção de um quadro de direitos económicos e sociais.
Pelo contrário, sempre que o desenvolvimento entra em crise, sempre que o povo convive com elevados índices de pobreza, de desemprego, os direitos de participação política empobrecem, são alvo de ataques por parte dos poderes públicos .Porque os poderes públicos entendem necessário sufocar a liberdade de crítica em relação a políticas que provocam a pobreza e o desemprego.
Os poderes públicos tremem sempre que a liberdade de expressão zurze com eficácia as suas políticas antisociais. Os poderes públicos preferem a frase de Atila: Por onde passa o meu carro a erva já não cresce.
Em todas as esquinas da cidade
Um cartaz denuncia o nosso amor
Não podemos, pois admirar-nos de que, numa situação como a que se vive hoje em Portugal, de profunda degradação dos direitos económicos e sociais, encontremos vivendo a par e passo com essa degradação, a profunda degradação da democracia política. Os exemplos são inúmeros.
Mas é bem a expressão dessa degradação a tristemente célebre intervenção de uma ex-secretária de Estado da saúde (do defunto Ministro Correia de Campos), que não teve pejo em recriar tempos do fascismo quando afirmou publicamente: «Só nos locais apropriados… só nos locais apropriados… não tenhamos vergonha de dizer isto… nas nossas casas, na esquina do Café e com os nossos amigos, podemos dizer aquilo que queremos».
Por que será que tão triste intervenção faz lembrar A invenção do amor de Daniel Filipe:
Em todas as esquinas da cidade
Um cartaz denuncia o nosso amor
Amor à liberdade de expressão, que conhece formas de intromissão insuportáveis dos poderes públicos
Neste caso, para além dos entorses no Estatuto dos Jornalistas, conhecem os jovens, sobretudo, as consequências da lei da rolha.
Envia-se a PSP e a GNR para desmobilizar manifestações de estudantes, como aconteceu em Vila Nova de Gaia e em Valongo; envia-se a PSP à sede de um Sindicato para vigiar o protesto que se sabe poder eclodir contra a política do 1.º Ministro. Envia-se a PSP para identificar pessoas que se encontram numa vigília de protesto perante a Assembleia da República.
Quer-se criar o convencimento (errado) de que uma manifestação tem de ser autorizada. Uma manifestação daquelas que o Senhor 1.º Ministro considera más, marginais, por ser uma manifestação de protesto.
Recorre-se mesmo aos Tribunais – o senhor 1.º Ministro recorre aos tribunais – para, através do medo, fazer diminuir o volume dos protestos.
Recorre- se à PSP para impedir a pintura de murais. Apreendendo tintas, identificando os jovens que se dedicam a essa tarefa. Assim se impedindo a criatividade da juventude através de uma forma de arte utilizada mesmo por pintores célebres como Portinari.
Envia-se a PSP para identificar pessoas, de preferência dirigentes sindicais, como aconteceu em Guimarães, processando judicialmente pessoas que se juntaram para protestar contra as políticas anti-sociais do 1.º Ministro.
Mas envia-se também a PSP ou a GNR, como aconteceu com a Valorsul, para interferir com o direito de greve, que já não chegam sequer os entorses sofridos por esse direito no Código do Trabalho.
Ou envia-se a PSP ou a GNR para impedir a realização de plenários sindicais, ou para tentar impedir a divulgação de documentos sindicais, sempre com a ameaça da tentativa de identificação dos famigerados e perigosos agitadores.
E porque, para este Governo, o inimigo n.º 1 da segurança interna se situa na área das pessoas que contra leis injustas se manifestam – ele é o dirigente sindical, o jovem que protesta contra as condições do ensino, ele é o trabalhador grevista –, eis que surge também a peregrina ideia de poder efectuar escutas telefónicas sem processo nem mandato judicial! O país inteiro é suspeito de agir contra a lei. Logo, é preciso que os ouvidos do imperador oiçam o que o povo diz.
Com tanta desconfiança no povo, apetece dizer com Bertold Brecht: não seria melhor para o Governo dissolver o povo e eleger outro?
Por fim, e como todo este edifício de ataques às liberdades estará incompleto sem que se mexa no poder judicial, preparam-se medidas subversivas (subversivas no mau sentido) para alterar o estatuto dos magistrados, matando Montesquieu e a sua teoria de separação de poderes. Para colocar o poder judicial à mercê do poder político. É isso que quer dizer a inconstitucional medida de funcionalizar os magistrados, sujeitando-os quanto aos vínculos e carreiras ao sistema da função pública.
A independência do poder judicial, a autonomia do Ministério Público, ambos garantes dos nossos direitos, liberdades e garantias, começam a ficar para a história, em papel pergaminho amarelado e enrugado tantas vezes quantas as rugas do nosso descontentamento.
Valha a verdade que se diga que neste caminho sinuoso de ataques às liberdades, o Governo português, o senhor 1.º Ministro José Sócrates não está sozinho. Mas está mal acompanhado. Por outros governos da União Europeia, que fazem do chamado 3.º pilar – o pilar da cidadania e das liberdades – uma trave carunchosa, a ruir de podre com o ruir das liberdades.
De facto, com a decadência do outrora chamado modelo social europeu, com a flexigurança, com a perda dos direitos sociais e económicos, reforçam-se pela União Europeia políticas musculadas de segurança interna.
Ele é Sarkozy e a lei de segurança interna com todos os seus controles de identificação e novos bancos de dados informáticos. Ele é a Alemanha da senhora Merkel e a nova lei que permite a intromissão abusiva nas telecomunicações, para a qual nem os sites que se consultam na Internet estão a coberto do sigilo.
Valha também a verdade que se diga que tais medidas têm conhecido violento repúdio por parte dos cidadãos. Mas são bem a medida das armas a que recorre o poder político dito neoliberal, para calar o nosso descontentamento.
Para o neoliberalismo, tão proclamado defensor do indivíduo contra o Estado, não há afinal quaisquer direitos individuais sempre que estiver em causa os Direitos do Deus mercado.
Sendo contra o desenvolvimento dos povos, ele é contra os direitos económicos e sociais, contra as liberdades políticas fundamentais. Nas quais se inclui o direito de resistência contra ordens e leis injustas.
E foi esse direito de resistência que nos fez lutar contra a lei dos Partidos Políticos, que obriga a que estes provem que têm mais do que 5000 militantes.
E porque, quando se luta sempre há a esperança de vencer, aí temos a decisão do Tribunal Constitucional a suspender a aplicação da lei nessa parte.
E porque resistir contra o empobrecimento da vida política é defender a democracia que herdámos de Abril, a nossa luta é também contra qualquer desvirtuamento do sufrágio universal e directo que querem introduzir na nova lei eleitoral autárquica.
A nomeação de vereadores feita pelo Presidente da Câmara, único a ser eleito por sufrágio universal e directo, faz-nos regressar a tempos do antigamente.
Esta é mais uma forma de ataque à democracia política. Esta é mais uma forma de desrespeito pela vontade popular expressa nas urnas.
Impõe-se que se diga ao poder político que com o medo procura calar protestos de um povo em luta pelo progresso, impõe-se que se cante com Adriano Correia de Oliveira,
Venho dizer-vos que não tenho medo.
A verdade é mais forte que as algemas
Os imprescindíveis
Nesta luta de vida ou de morte contra o capitalismo situamo-nos (seguindo ainda Brecht) entre aqueles que são os imprescindíveis. Os que lutam toda a vida.
Não nos situamos entre os bons. Os que lutam 1 dia.
Não nos situamos entre os melhores. Os que lutam 1 ano.
Não estamos entre os muito bons. Os que lutam muitos anos.
Nós lutamos toda a vida. Somos imprescindíveis.
Imprescindíveis nesta luta constante da humanidade pelo progresso, pelo desenvolvimento, pelas liberdades.
«Porque – parafraseando o poeta comunista turco, Nazim Hikmet –
É em frente que vamos, não é verdade? É em frente que vamos».
(*) Documento da ONU sobre Direitos Humanos, de 1993.