MORREU GEORGES LABICA-UN GRANDE COMUNISTA, PENSADOR E HUMANISTA REVOLUCIONARIO

[Miguel Urbano Rodrigues - O diario.info]
"Georges Labica–Um Humanista Revolucionário que amava a Palavra, o Pensamento e a Vida"

Georges Labica, que estivera con nós con ocasión da XXI Semana Galega de Filosofia (2004), faleceu no dia 12 de Fevereiro em Saint Germain en Laye, França. A esse amigo e camarada, que foi um dos filósofos marxistas mais talentosos e criativos do século XX, dedica o comunista português Miguel Urbano Rodrigues este artigo.


Foi pelo telefone que falamos pela primeira vez há uns dez anos.

Eu estava em Paris com Henri Alleg e pedira-lhe que encontrasse editor para o livro de uma amiga chilena.

Ele comentou: vais expor o caso a um camarada mais indicado do que eu para isso. Pegou no telefone ligou para Georges Labica, trocaram algumas palavras, e passou-me o aparelho. Eu conhecia dois ou três dos seus livros, admirava-o, mas senti algum acanhamento com a situação. Logo se desvaneceu.

Tive a estranha sensação de falar com alguém muito próximo, pelo tom de quase intimidade que imprimiu ao nosso breve diálogo. Foi o prólogo de uma futura amizade que não parou de crescer.

Georges visitou o Alentejo pela primeira vez em 2004. Chegou para participar no I Encontro Civilização ou Barbárie, em Serpa.

A velha cidade da Margem Esquerda do Guadiana produziu nele um efeito de deslumbramento.

As muralhas medievais, as ruelas tortuosas, o casario branco, a transparência do céu azul, a vastidão silenciosa dos montados, a atmosfera humana, fascinaram-no.

Nadya, a sua mulher, uma Kabila que aos setenta anos faz pensar, pela beleza e pela figura, numa princesa das Mil e Uma Noites, sentiu-se também enfeitiçada.

Georges e Nadya gostaram tanto que voltaram. Ele retornou a Serpa para fazer uma conferência e, posteriormente, para intervir no II Encontro Civilização ou Barbárie.

- Sabes – confidenciou uma tarde, sorvendo com vagar um café no pátio da residencial onde estava hospedado – sentir-me numa cidade governada há três décadas por comunistas, onde a fraternidade nos envolve de manhã à noite, mergulha-me num mundo sonhado cujas portas não fomos capazes de abrir. Os comunistas do teu Alentejo fazem-me regressar à juventude, quando acreditávamos que iríamos transformar rapidamente o mundo e concretizar o projecto de Marx.

As visitas de Georges Labica a Portugal foram ignoradas pela comunicação social caseira com excepção de um pequeno semanário de Beja, o «Alentejo Popular», que o entrevistou.

Essa atitude não surpreende. Os jornais ditos de referência e os e canais de TV portugueses não identificam qualquer interesse noticioso na vinda ao país de um intelectual com a envergadura do autor do “Dicionário Crítico do Marxismo”.

O FILÓSOFO E A OBRA

Georges Labica, foi na minha opinião um dos filósofos marxistas mais criativos do século XX.

A sua contribuição como professor e pensador foi importantíssima para que sucessivas gerações – primeiro na Universidade de Argel, depois na Universidade de Nanterre, em Paris – se aprofundassem na compreensão da obra, da mundividência e do projecto do autor de “O Capital”.

Na sua obra vastíssima livros como “O Estatuto Marxista da Filosofia”; “O Paradigma do Grande Hornu-Ensaio sobre a Ideologia»; ”De Marx ao Marxismo»; «Frederick Engels, sábio e revolucionado” e sobretudo o “Dicionário Crítico do Marxismo” são trabalhos fundamentais numa época em que o fim da URSS funcionou como estímulo à capitulação de milhares de intelectuais progressistas e transformou em moda a satanização do marxismo.

Pensador consciente de que a reflexão sobre o homem e a transformação da vida exigem a abertura ao universal, Labica adquiriu desde a juventude uma cultura humanista que lhe permitiu escrever sobre acontecimentos e personalidades muito diferentes que intervieram, por vezes decisivamente, no movimento da história, influenciando-lhe o rumo. Estão nesse caso ensaios sobre Ibn Kaldhoun, as Teses de Marx sobre Feuerbach, Lenine, Robespierre, Labriola e outros.

Essa faceta da sua personalidade ajuda a compreender a trajectória do pensador para o qual a participação militante nas lutas sociais do seu tempo era complemento indispensável do trabalho criador do filósofo.

Não se limita como outros à reflexão sobre a obra de Marx. Ao aplicar o marxismo à compreensão do mundo contemporâneo, ao utilizar o método do mestre para o entendimento de fracassos na transição do capitalismo para o socialismo, e para a análise do presente, inova, revela uma poderosa criatividade.

O fim da sua actividade docente permitiu-lhe intensificar as colaborações em revistas e outros media progressistas e participar com mais frequência em Congressos e Seminários Internacionais promovidos por partidos e movimentos revolucionários. Correu então muito pelo mundo, da Europa à Africa, de Havana ao Médio Oriente.

O REVOLUCIONÁRIO


Foi nessa fase da sua vida que cimentamos a amizade que nos unia.

Comunista desde a juventude, afastara-se do PCF por não se rever mais num Partido que, participando no governo da gauche plurielle, avalizara uma política neoliberal tão reaccionária que – recordava – privatizara mais empresas do que, juntos, os governos de direita de Balladur e Juppé.

“Deixei o Partido ouvi-lhe desabafar um dia – para continuar comunista!”

Respeitado inclusive pelos inimigos, Labica conseguia com frequência nas suas intervenções em Encontros Internacionais, transmitir mensagens ideológicas de grande rigor teórico que findavam em apelos à acção revolucionária.

Conheci poucos comunistas como ele com os quais me tenha sentido tão plenamente identificado nos terrenos da ideologia e da praxis.

Fez do eticismo na política, como na vida quotidiana, uma exigência permanente. Essa fidelidade difícil a princípios e valores revolucionários criou-lhe ao longo da vida embaraços e antipatias mesmo entre camaradas. Era um marxista incómodo.

Como comunista não calava críticas aos mais altos dirigentes revolucionários quando as tinha por necessárias. Era incompatível com todas as modalidades de populismo e com opções tácticas que envolviam concessões ideológicas. Recordava a opinião de Lenine para o qual o taticismo era uma forma de oportunismo.

Mais de uma vez o vi permanecer sentado em actos públicos em que a quase totalidade dos presentes aclamava com entusiasmo um líder carismático cujo discurso resvalara para a demagogia.

Critico implacável, quando necessário,no campo das ideias,evitava as criticas pessoais. A ausência de vaidade era uma característica da sua personalidade. Mas não cultivava a modéstia, era nele virtude espontânea.

O HUMANISTA

Georges Labica desenvolvera um grande afecto pela América Latina. Falava com fluência o castelhano, conhecia bem a história atormentada do período colonial e a história das revoluções do século XX no Continente, desde a mexicana à venezuelana, e obviamente a cubana. Essa intimidade com o passado, remoto ou recente, de sociedades tão diferentes das europeias permitia-lhe um contacto directo com as pessoas nas cidades e nos meios rurais.

Coincidimos mais de uma vez em Caracas e no México. Esses encontros eram extremamente gratificantes para mim e minha companheira pela amizade que nos ligava a Georges e a Nadya.

Não esqueci uma manhã em Coyocan, na Cidade do México, quando visitámos a Casa de Frida Kahlo e Diego Rivera que todos admirávamos e, depois, aquela onde viveu e foi assassinado Trotsky.

Horas como essas abriam portas para intermináveis conversas posteriores sobre a bela e inquietante aventura do Homem empurrado hoje para o abismo por um sistema de poder monstruoso, que ameaça a própria continuidade da vida na Terra.

No Palácio Nacional, implantado na gigantesca Praça do Zocalo, a contemplação dos frescos de Rivera, como maravilhoso painel da história terrível e maravilhosa do seu povo, convidam, quase obrigam, a uma meditação serena e enriquecedora sobre a vida, as grandezas e misérias do homem, a sua caminhada para um futuro insondável, e os seus medos, impotência e insignificância.

Conversar com Georges ajudava a transformar o conhecimento em cultura num processo de assimilação difícil de compreender e explicar.

E difícil porque ele foi também um pensador que amou com paixão a palavra. Poderia ter sido como outros, um filósofo grande e um revolucionário íntegro e ético e um mau escritor. Mas Georges Labica, ao lançar pontes harmoniosas entre as ideias e a linguagem que as expressa, criou e dominou um estilo que fez dele um grande escritor. Ao ler alguns ensaios do seu último livro, A Teoria da Violência, recordo os grandes clássicos franceses do século XVIII, porque a forma e a essência do pensamento se fundem harmoniosamente, inseparáveis.
No final de um almoço, no seu apartamento de Saint Germain en Laye, onde quadros e objectos de arte conduzem o visitante a imaginar a caminhada de Georges pelas estradas do mundo, Nadya fez uma confidência de que guardo memória:
- Quando o vi pela primeira vez numa aula, no liceu onde ele era professor, eu era uma jovem da Kabilia que saía da adolescência. Mas pensei “este jovem vai ser o homem da minha vida”. E foi. Estamos casados há meio século e amo-o como nos anos da juventude.

Por mim, falo da amizade que cresceu com a admiração.

Aprendi com o rodar do tempo que o sentimento da amizade é muito diversificado. Incluo o que me ligava a Georges Labica entre os menos comuns.

Ele tinha o poder de transmitir confiança quando me escrevia, manifestando apreço pelos meus modestos escritos e identificação com posições e ideias que eu assumira.

É reconfortante a certeza de que a obra e o exemplo de Georges Labica vão sobreviver ao seu desaparecimento físico.

Vila Nova de Gaia, 16 de Fevereiro de 2009




Em homenagem à memória de Georges Labica, amigo e colaborador de odiario.info republicamos a seguir a introdução, “Colocar em Palco”, do seu livro “Teoria da Violência”.



COLOCAR EM PALCO

Por Georges Labica - 28.03.08

A nossa época é banhada pela violência. Nós próprios banhamo-nos na violência. A própria palavra é a mais entontecedora dos nossos discursos e dos nossos escritos. Nós denunciamos as violências. Nós acusamos as violências. Nós nos defendemos de ser violentos. Nós queixamo-nos das violências. «A violência deixa-me doente e portanto ela é da ordem natural do mundo»[1] . Tal se aplicaria aos indivíduos, de todas as eras e de todas as qualidades, para os grupos, para as nações, para as etnias, para as religiões, para as filosofias e para as ideologias. Não haveria aqui nenhum maniqueísmo, ao contrário, todas as misturas seriam possíveis e audaciosamente praticáveis: num dia, um denuncia, num outro, é-se acusado, um outro ainda, nós nos defendemos; o maldizente pode ser, ao mesmo tempo, o culpado e o protestador; inocenta-se aquele que foi incriminado, enquanto ensombramos aquele que branqueamos anteriormente; invoca-se essa boa-fé e fazemos a nossa própria auto-crítica…

A violência mora em todo o lado como se desde o fundo dos tempos fosse aquela que impõe o veredicto do mais forte. A palavra pode ser acusada, como dizemos no tribunal, mas é igualmente o único privilégio do procurador, quando este dispõe e possui os meios da sanção, então ele não entende senão cindir-se. «É aí que vós sereis poderosos ou miseráveis…». Mas de onde vem essa violência e sobre quem ela lança a sua rede? Proteiforme, isto é, com muitas formas, ela é a arte da insídia, sobre a qual se expressam três formas que passaremos a ver.

Ela é profusa e mesmo superabundante. Ela engloba tanto as formas clássicas de criminalidade e de delinquência que surgem constantemente nas nossas sociedades de mercantilizações e de desigualdades. Nestas últimas essa forma clássica não é limitada, já que não nos podemos abstrair dos conflitos armados – guerras e massacres, antigos e modernos que continuam sem apelo nem agravo; sobre estes tomemos atenção para além dos aspectos físicos, também os aspectos morais e psicológicos que, por serem menos visíveis, não são de menor gravidade. A violência é também difusa. Ela infiltra todos os segredos da nossa vida social: urbana, rural, escolar, conjugal, carcerária, empresarial, comercial, financeira, institucional, militar, policial, diplomática… Essas maneiras desafiam os recenseamentos: injúrias verbais, ameaças gestuais, perseguições morais, pancadas, agressões, golpes, roubos, vigarices, aversões, violações, sevícias, mutilações, torturas, mortes… Dentro desses diferentes registos surge toda uma gama de comportamentos onde intervêm os indivíduos, os grupos (as associações de gangues), as multidões, os exércitos, os povos; não importa quais os instrumentos ou os objectos que possam servir de pretexto a cometer um acto violento. Por conseguinte, a violência é confusa. Ela é insustentável de definir apenas por essas situações dissemelhantes e muitas vezes contraditórias (quem as decide? [2]), pequenos delitos e crimes de sangue, violências contra pessoas, contra os bens e contra a natureza, violências contra os outros e contra si, violências premeditadas e violências súbitas, violências deliberadas e em legítima defesa, violências de Estado e violências civis, violências humanas e violências naturais, violências legais e ilegalismos, violências conservadoras e violências revolucionárias…

Os códigos penais perdem-se na casuística, os tribunais tornam-se o local onde se guardam todos os procedimentos embrulhados e as jurisprudências acumuladas das decisões controversas. Que dizer também da lista sempre incompleta de sistemas políticos, de filosofias e de ideologias, estipendiadas pela sua violência intrínseca, todos esses ismos, como o fascismo, o nazismo, o totalitarismo, o colonialismo, o estalinismo, o maoísmo, o capitalismo, o islamismo, o imperialismo, o racismo, etc. e porque não a própria política em pessoa? Existe um aumento das violências consideradas não apenas como subtracções a toda e qualquer sanção, mas mesmo dignas de elogios e de reconhecimentos: as condecorações dos heróis de guerra medem-se pelo número de mortos que eles conseguiram atingir… pela saúde da pátria. Podemos nós falar então de violências salutares? Sobre a prisão, com o seu mito da reinserção, não. Sobre o colonialismo exportador de civilização, menos ainda. E sobre o pequeno açoite de outros tempos? Paradoxo dos dias de hoje: empanturramo-nos com a primeira, reabilitamos a segunda e prescrevemos a terceira. Restará o desporto, mas sem as anfetaminas e sem a EPO (doping)…

Existem portanto violências apreciadas como não violentas. O gesto de um cirurgião perfurando o esterno para extrair um coração não é muito diferente do padre asteca mergulhando o seu manto de obsidiana no altar dos sacrifícios, ou, se não fosse o uso da anestesia eles não estariam assim tão longe um do outro. Em contraste com a crueldade, não se pode aqui evocar a «doce violência»?

A violência de hoje é pior do que a do passado? A questão é debatida, mas ela é relativizada no domínio visado, se se remete à criminalidade e às violências físicas ou quando se considera as hecatombes dos conflitos mundiais e das repressões em massa. A estimação global dos últimos 50 anos eleva-se a cerca de 60 milhões de mortos, feridos e enfermos, fazendo do século XX e do século XXI, que ainda mal começou, o século por excelência das matanças em massa. Uma constatação que tende a corroborar esse julgamento, a saber, não há uma guerra que nesse meio século que não seja vista como séria e objecto de estudos específicos, mesmo que ela não figure na maior parte dos dicionários da especialidade. O facto de que as violências são, nas nossas sociedades, melhor conhecidas, graças às declarações e ao depoimento das vítimas (de violações e de incesto, por exemplo), aos inquéritos e às estatísticas oficiais nacionais e internacionais, e, de modo geral, os meios de comunicação social, não muda grande coisa a tal constatação. Pode-se por vezes confortar-se com a multiplicação de especialistas da violência: investigadores nas ciências humanas e sociais, dos psicólogos aos historiadores; corpos de médicos, psiquiatras e analistas, criminólogos, agressólogos, acidentólogos e vitimólogos; forças da polícia; religiosos de todos os tipos e obediências; diversos agentes sociais, assistentes sociais e conselheiros conjugais; astrólogos e outros mágicos. Como grandes testemunhos dessa miséria agravada temos os romances Nord e Rigodon de Céline ou Acácia de Simon.

Acrescentemos que os nossos tempos nos têm gratificado com algumas novas más acções: o assédio no trabalho, diferente do assédio sexual, o terrorismo em massa, diferente do simples terror, ao guardarmos da omissão info-com, que condiciona a opinião e domestica as consciências. Por conseguinte, é vão dizer se a violência aumentou, quando ela é já elevadíssima, profusa, difusa e confusa. O que aumenta e a acompanha e multiplica, até à náusea, é o discurso destinada a confundir com os malabarismos político-mediáticos, empregados para nutrir constantemente fantasmas e desejos de segurança. A representação não poderia ser menos inocente. Numa trintena de anos a oferta e a venda ao maior preço apoderou-se dos domínios da morte e do sexo, onde o romance e o cinema são levados aos limites mais extremos, como por exemplo os thrillers onde cenas de crime e de coito são impostas aos guionistas e aos realizadores.

A existência (ou a indefinibilidade) da violência, podemos dize-lo, não data de ontem. Ela é co-extensiva com o aparecimento da espécie humana. Ela é, de qualquer modo, congénita e irremediavelmente inscrita na sua natureza sob a forma da pulsão (instinto?) agressiva. Ela fala bem dos nossos longínquos antepassados que tinham a capacidade de se defender num universo hostil que era o seu. É por isso que no neolítico, com o surgimento da civilização, a violência aparece como profundamente nefasta para o corpo social, donde o contrato social fundador tinha por função essencial a colocar na borda, mas incapaz de a eliminar totalmente. Com o fim de evitar a arbitrariedade do direito do mais forte, os políticos viram-se na necessidade de a colocar em segundo plano, deixando-a para os representantes mandatados para tal. Ela é assim medida pelos critérios do permitido e do proibido, do legítimo e do usurpado, do justo e do injusto. Religiões e filosofias, por seu turno, ostracizam esses princípios e colocam-na como legítima para determinados casos: não seria ela necessária, por exemplo, para defender a nação e de conquistar mais um pouco para esta, para impor bons pensamentos e de erradicar os sacrílegos, ateus ou cépticos? A força distingue-se da violência ao ponto de se tornar uma muralha de defesa. A força passa a estar ao serviço do Bem, a violência do lado do Mal, duas categorias que asseguravam a incansável fortuna das teodiceias teológicas e metafísicas. A crença na anarquia e na desordem, o medo concretamente obsessivo da destruição e da morte, das ruínas e do sangue, perfeitamente fundados, eram portadores dos antídotos do Amor, da Fraternidade e da Paz e suscitaram sonhos de empreendimentos bem-intencionados. As doutrinas da não-violência apresentaram-se e afirmaram poder resolver os problemas da violência por meios que a não implicariam e com a ambição de a remeter para o baú. Aí, o inferno e o paraíso – negligenciando a perspectiva do purgatório – transpunham post mortem a violência e a paz. O além não seria melhor do que o aqui: a pena e a recompensa ali nas chamas, aqui os horrores terrenos. Não poderíamos então imaginar a comutação radical duma humanidade reconciliada? Que religião levaria isso a cabo?

Em resumo, a violência com um V maiúsculo, não existe. Ela é desencadeada dentro de um puzzle donde não podemos juntar as peças. Não é igualmente verdade que todas as violências sejam equivalentes e apenas por razões jurídicas de estimação do delito e da sanção, do crime e do castigo. Existem grandes e pequenas violências, importantes e derivadas: não podemos colocar no mesmo plano o furto duma mãe para amamentar o seu filho com o mercado de sono – um hotel por exemplo – que acolhe os seus «locatários». Daqui chegamos à conclusão de que o primeiro é punido mais severamente do que o segundo caso; e que falar do roubo de uma residência secundária por jovens delinquentes comparados com as prevaricações, corrupções e benefícios escandalosos de altos responsáveis de fundos públicos? Que é a criminalidade normal, inclusive de sangue, comparada com as actividades das máfias? Na verdade, é certo e sabido que há uma hierarquia que permeia as violências. Citemos o que propunha Hélder da Câmara: «A mãe de todas as violências confunde-se com as injustiças que os países desenvolvidos cometem contra os povos, tendo em vista desenvolver os ricos contra os pobres. Qual é a primeira violência que engendra a reacção dos pobres e dos países subdesenvolvidos, senão uma violência provocada por uma outra muito mais culpável? A terceira das violências é a repressão daqueles que os governos e os países ricos exercem contra aqueles que procuram responder à violência destes últimos. Esta violência dos governos, etc. é injusta porque, para todos os efeitos, ela não pretende suprimir a sua causa mas os seus efeitos. Porque é uma violência ao serviço de uma outra violência, a única ou a primeira que deve ser extirpada, a violência da injustiça». Temos assim três violências: a básica, a reactiva e a repressiva.

Depois deste percurso sobre alguns dos tópicos fundamentais da violência imputados à nossa tradição cultural, e que me fizeram abordar a força de vários paradigmas (capítulos I, II e III), faremos uma recensão em duas partes das significações que autorizam uma confrontação histórica (capítulo IV) e sem perder muito tempo com significações demasiado intrincadas (capítulo V) e antinomias (capítulos VII e VIII), concentrar-me-ei, daí em diante, a tentar compreender a correlação entre violência e sofrimento, algo que nos permitirá estabelecer a sequência violência 1/ sofrimento/violência 2. Isto é importante para a compreensão da criminalidade visível e da criminalidade escondida (capítulo VI). Esta distinção, por seu turno, apoia-se numa análise do poder (capítulo IX), enquadrada no que é a violência estrutural ou sistémica, a verdadeira raiz de todas as violências, pelo menos na escala da nossa época (capítulo X). Portanto, é possível formular uma resposta à anatemização sem apelo da violência e também visualizar os meios para combater uma situação que podemos dizer que: «todos os homens nascem livres e iguais em direito, à maioria deles todos» (conclusão).

Nessa conclusão, depois de largamente trabalhar no material disponível, do qual não me pude furtar à dupla e enorme dificuldade de afrontar uma literatura colada à expressão e à descrição das formas de violência, o que se confunde com a própria história humana, o que me levou a reduzir e sintetizar os arbitrários divulgados e, para um mesmo período histórico contemporâneo, fazer face de fontes, unicamente bibliográficas, cada dia um pouco mais indomáveis, condenando-me às estreitas fronteiras do meu próprio território. Penso que o meu interesse já relativamente antigo (15, 20, 25 anos?) pelas questões ligadas à violência me autorizam a propor um balanço sob a forma de uma certa Teoria da violência.

Notas:
[1] Cf. Imre Kertesz, Roman Policier, Arles Actes Sud, 2006, p.44.
[2] São mesmo imaginárias e artificiais; por exemplo, repare-se na declaração duma personagem política, depois de travos delirantes: «Dominique de Villepin: «contra os meus próximos existe uma verdadeira violência. Isso é que é o mais doloroso. Farei tudo para os proteger contra essa crueldade» (Paris-Match, Junho de 2006).

Tradução de João Aguiar

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